domingo, 27 de março de 2011

acerca do "horror" (resenha)


Afinal, porque gostamos de filmes de horror? Ok, nem todo mundo gosta e, de fato, muita gente detesta. Muita gente não vê sentido nenhum em se assustar à toa, não considera isso nada divertido, sequer saudável. E há também os que riem deste tipo de narrativa, porque pensam que é tudo bobagem, efeitos sonoros e visuais que assustam os crédulos de mente fraca.




Pensando bem, entendo realmente que a maioria das pessoas que assiste os chamados "filmes de horror" pensa isso mesmo: é tudo bobagem, é uma "emoção enlatada", como em uma comédia ou um drama, como ir à montanha russa e gritar até cansar, ou assistir a uma peça de teatro e ser parte daquele mundo imaginário durante apenas umas duas horas. Este é um sentido das histórias de horror: poder experimentar emoções angustiantes, tensão, suspense, medo, etc. só que de forma segura, sabendo que é tudo invenção e que, no final, terminado o filme, tudo volta ao normal, e podemos dar boas risadas do fato de termos nos assustado daquilo. E isso é realmente muito natural, pois mesmo crianças têm esse estranho desejo de sentir medo, com as histórias de fantasmas e monstros que são muito convincentes quando contadas à noite, à luz de velas ou ao redor de uma fogueira, principalmente antes de dormir.

Aliás, para especificar: quando falo de "histórias de horror", me refiro àquelas que têm por temática central o sobrenatural, ou que deixam subentendido que nela atua algo de fora da realidade comumente aceita por nós como verdadeira.

Histórias de horror se distinguem do horror na ficção científica porque esta última tenta explicar (ou deixar sugerido que se possa um dia tentar explicar) os fenômenos de forma racional, quantificável e previsível pela consciência. Ainda que existam histórias de horror próprias da ficção científica, como os clássicos Guerra dos Mundos e Invasores de corpos, não é a mesma coisa. Nas histórias de horror da ficção científica, temos sempre a segurança de que o chão é sólido, de que tudo em que acreditamos até hoje continua valendo, mesmo se descobrimos que nossa espécie foi criada por alienígenas medonhos ou que estamos todos vivendo dentro de uma realidade virtual induzida por computadores a muitos séculos. As leis da física não mudam ou, se mudam, são substituídas por outras leis mais amplas e complexas, e é assim mesmo o mecanismo pelo qual a Ciência trabalha. Estas histórias podem assustar, mas dão sempre no final a impressão de que são teorias alternativas e mirabolantes a respeito da estrutura do mundo concreto.

Histórias de horror se distinguem das histórias do horror urbano ou de policiais, de detetives, os ditos suspenses, porque esta é a categoria reservada para horrores já cotidianos, ou exagerados para tornar a narrativa chocante. Aí se encaixam as personagens dos assassinos seriais, líderes políticos e os outros tantos monstros que são pessoas de carne e osso como nós, ainda que sejam tão perturbados que possamos questionar se são realmente humanos. Entretanto, volta e meia vemos notícias nos jornais que corroboram estas histórias, mostrando-nos que este tipo de horror é bem palpável, bem possível... Por um lado, é mais horrível ainda mas, por outro, nos conforta com a clareza de que o mundo ainda é o mundo, e o horror que alguns de nós praticam é mais uma dimensão da natureza, humana ou não. Como melhores exemplos, cito O silêncio dos inocentes e Monster - desejo assassino, que são sérios e profundos. Infelizmente, de uns tempos pra cá, têm sido produzidas algumas obras bem sofríveis, e até mesmo desrespeitosas, visto que banalizam e vulgarizam a violência e a doença mental, torcendo-as num formato "clean" vendável, retratando o horror como um simples exercício de idéias distorcidas e intrincadas, tais como Jogos mortais e O amigo oculto.

Histórias de horror se distinguem das narrativas sobre o horror da guerra, que são vistas hoje tanto na ficção e na literatura histórica quanto nos noticiários sobre o Oriente Médio e o nosso Estado de São Paulo. Falei sobre isso um pouco no dia dez deste mês, aqui no b'log. A guerra é o espaço limite da civilização: ao mesmo tempo motivador de invenções tecnológicas e controlador de excedentes populacionais, conduz a violência ao seu ápice, transforma nossa condição em algo mais baixo, mais vil, mostrando que somos capazes de atos inaceitáveis, e mesmo impensáveis, dentro do ambiente social habitual. Não há muito mais o que dizer sobre isso... A guerra é uma expressão do horror incontrolável, absoluto e, ao longo de nossa história, nunca estivemos completamente livres deste tipo de pesadelo desperto. As duas terríveis Grandes Guerras Mundiais foram a derrocada das esperanças de harmonia no ideário da Modernidade, as quais muitos de nós estamos tentando até hoje recuperar, ou substituir por algo mais sólido e duradouro. Filmes que falam sobre este assunto, com ênfase no horror psicológico, existem muitos e muito bons, com destaque para Nascido para matar (Full metal jacket) e Alucinações do passado (Jacob's ladder); existem, claro, outros muito tenebrosos em diversos sentidos, de tão mal feitos.

Histórias de horror podem mesmo enfocar simplesmente o plano do horror psicológico, a vulgarmente chamada loucura, que pode ser tanto a loucura de um sujeito isolado quanto a loucura de uma comunidade inteira. Sem necessariamente mostrar conseqüências concretas, como no caso da destruição e da agressão física, este gênero tende a explorar o sofrimento humano mais realista. Aliás, as narrativas deste estilo são comumente narrativas que trazem críticas, sejam com respeito ao sistema de saúde mental e seus métodos de tratamento, seja com relação à dinâmica das instituições, como a família, a escola, a política, etc. Nosso querido Nelson Rodrigues foi um mestre deste tipo de construção argumentativa; ainda que por vezes deslanchasse em delírio, nunca perdia contato com o centro de orientação que o conduzia. Este tipo de horror é o que sustenta os outros tipos, e podemos dizer que está incluído dentro de todos eles; cito-o isoladamente porque pode se apresentar neste formato particular.

Histórias de horror podem ainda ser trabalhadas no nível do horror fantástico, do absurdo assumido, que são o que fazem geralmente nos filmes sobre vampiros, lobisomens e mortos-vivos, etc. Digo "assumido" no sentido de que sequer tentam parecer próximos da realidade; pressupõem que o espectador "entre no jogo", aceite desde o começo que certas maluquices totalmente implausíveis são fatos concretos naquele momento. Partindo daí, certos filmes podem ser realmente muito bons, inteligentes e assustadores; ainda que não sejam "sérios", criam tramas sombrias, semelhantes aos antigos contos de fadas (para quem não sabe, por exemplo, a Chapeuzinho Vermelho morre no fim da historinha infantil em sua versão original). Cito os diretores Argento e Romero, este último com o clássico A noite dos mortos-vivos; na década de oitenta, O lobisomen americano em Londres e o primeiro Pesadelo (Nightmare on Elm Street) marcaram lugar junto com todos aqueles filmes sobre Drácula, que teve sua versão mais aprofundada bem mais tarde com Coppola, em Drácula de Bram Stoker, que aliás muitos dizem que não é horror. Esta sim é uma lista longa, a do horror fantástico, nem vou tentar entrar no mérito. O valor que vejo neste tipo de narrativa é exatamente esta liberdade criativa, este gosto de "conto da Carochinha" para adultos, esta natureza fabulosa do imaginário humano, delirante, porém com certo sentido simbólico, como os pesadelos noturnos mais insólitos. Desconsidero, claro, a categoria do horror esculacho, que foi de onde surgiu o gênero "terrir", mistura de terror com rir; este tipo de narrativa não chega a muito mais do que sustos repentinos e imediatamente engraçados, mal-estar por causa de cenas nojentas, e são mais um gênero de diversão bizarra, de uma estética exótica e escatológica, do que realmente horror.

Portanto, entendo que, para a maioria das pessoas, a coisa fica por aí, nestas categorias que citei: horror mesmo é isso, não tem como "levar a sério" qualquer coisa que não seja delimitada pelos nossos padrões de realidade concreta e cientificamente explicada. Existe apenas o que vemos todos os dias, e não tem sentido nós nos preocuparmos com as almas dos mortos ou alienígenas mal-intencionados se um ladrão, um motorista bêbado ou um sociopata são problemas com os quais realmente temos de lidar. Saudável é quem consegue separar o horror fantástico, de função simbólica e imaginária, do horror real, seja o urbano ou da guerra.

Aliás, esse é um aspecto interessante do componente irracional de nós seres humanos: pergunte a alguém se ele acredita em vampiros, demônios ou coisas do gênero (supondo que "acreditar" é sinônimo de "acreditar que existe e que pode acabar aparecendo ali na frente do sujeito"), e veja a diferença de fazer esta pergunta às três da tarde no parque da Redenção e às três da manhã num quarto pouco iluminado, de preferência com uma janela que dê vista para uma lua cheia sobre um cenário ermo, sem energia elétrica. Bem, se nossa civilização se "libertou" das "crendices sem sentido" que permeavam as comunidades humanas anteriores, por outro lado não deixamos os sentimentos que acompanham certas imagens, conceitos, sensações, totalmente de lado.

E há muitas outras dimensões da nossa natureza humana que são comparáveis a de nossos ancestrais, dada nossa natureza destrutiva. Vejamos, por exemplo, a escalada da violência ao redor do esporte nacionalmente consagrado, o futebol (literalmente "ao redor", porque a violência não está tanto no campo quanto nas arquibancadas). Por um lado, isso não é um fenômeno repentino, e veio evoluindo nas últimas décadas; o futebol tornou-se progressivamente mais violento, refletindo o trajeto da nossa sociedade como um todo. Por outro lado, este tipo de coisa sempre existiu, desde os "circos" dos romanos e antes ainda. O que muda é a configuração, a escala, a intensidade, a possibilidade de controle, o nível de danos provocados. Mas a agressividade em si é da nossa natureza, assim como a esperança, assim como a compaixão, assim como o medo... principalmente o medo do desconhecido.

Por isso mesmo, entendo que há uma última, e pouco considerada, categoria: o horror realista, que é a narrativa que se apresenta de forma convincente, mesmo tratando de um tema sobrenatural o qual, por definição, não é real. Este tipo de história assusta não só na imagem, no som, na narrativa apresentados, como também no conceito e na possibilidade de que seja verdade. Vejamos... temos o caso paradigmático de A bruxa de Blair que, todos sabemos, trata-se de ficção mas que, no formato apresentado, propôs a ficção de ser um caso real. Muita gente acreditou, pelo menos por algum tempo, que a lenda da bruxa era de verdade. Há outros casos, não me recordo agora, e agradeço aos leitores que puderem contribuir com nomes. É uma qualidade de "beirar o real" que existe em outros gêneros: na ficção científica, há os filmes sobre alienígenas, que são um mito vivo de nossos dias, como no título Incidente em Roswell. De qualquer modo, é mais comum hoje encotrarmos pessoas ditas "esclarecidas" que levem à sério visitantes alienígenas do que visitantes de um mundo espiritual. Quando se trata com o sobrenatural, é inevitável tratarmos com a religião, pois ambos coexistem no mesmo plano de percepção do mundo: de que existe um outro mundo, imaterial, espiritual, imortal, que é para onde vamos quando morremos e de onde, em certas excessões não-naturais (sobrenaturais), alguns voltam.




trecho de artigo publicado originalmente (na íntegra) em:
onirosvidadesperta.blogspot.com/2006/07

13 comentários:

Maicon Antonio Paim disse...

Uma vez ouvi uma pessoa dizer que gostava de filmes de terror desde que não a fizessem se sentir mal. Bom, se o filme não te provoca algum tipo de angústia, no mínimo falhou como terror. Acredito que um bom filme de terror tem que ser desagradável, provocar desconforto e angústia e, na melhor das hipóteses, tirar o nosso sono, nem que seja por uma noite. Há um sentido masoquista por trás disso? Com certeza. O contato com os nossos medos mais primitivos também pode ser prazeroso, afinal se trata de uma experiência profundamente humana, a qual, geralmente, só temos oportunidade de vivenciar mediante manifestações artísticas.

Maicon Antonio Paim disse...

Errei ao usar o termo "terror"; é "horror" na verdade.

A propósito, sobre o horror fantástico lembro das histórias do Guy de Maupassant, em que o autor não trabalhava claramente com manifestações sobrenaturais, mas sim com o "desconhecido", ou seja, acontecimentos que põem em dúvida as "certezas" humanas, mas que não são necessariamente extraterrenos ou estão fora da ordem da natureza.

Marcel disse...

Acredito que é necessária muita cautela ao se descartar uma obra.

Um erro comum de se cometer, é avaliar somente um fator... esquecendo que ela pode ser muito relevante em algum outro fator.

Jogos Mortais na minha opinião é um divisor de águas. O terror do fim dos 90 e começo dos 00 estava morto e enterrado com obras previsíveis que seguiam sempre a mesma fórmula... como as continuações de Pânico, Eu Sei o Que Vocês Fizeram no Verão Passado, Lenda Urbana... e diversas cópias de cópias inundaram o gênero de mesmice. (Talvez a Bruxa de Blair tenha sido o único filme que conseguiu me surpreender nessa era das trevas, ainda que não tão original).

Até que chegou Saw e ousou trazer elementos que antes pareciam ser evitados. Saw, assim como Hostel são filmes que tratam abertamente de tortura... como falar de tortura sem mostrar tortura ? E convenhamos, abordam muito bem o tema. Seria como criticar um filme sobre perversões sexuais de ter muitas cenas de sexo pervetido.

Mas o ponto que quero chegar... é que depois de Saw, a coisa toda mudou e as obras seguintes ousaram muito mais. Os remakes de Quadrilha de Sádicos, A Morte Pede Carona, Massacre da Serra Elétrica, REC. Apesar de não serem grandes coisas, surpreenderam e trouxeram um novo fôlego ao gênero. Depois de Saw, consigo citar vários filmes que contribuiram pelo menos com algum fator relevante ao gênero.

Marcel disse...

"Uma vez ouvi uma pessoa dizer que gostava de filmes de terror desde que não a fizessem se sentir mal. Bom, se o filme não te provoca algum tipo de angústia, no mínimo falhou como terror"

ainda acho limitada essa visão... vou além.

um filme de terror também pode ser apreciado do ponto de vista do Mal.
Quem não tem vontade de sair esquartejando gente de vez em quando ? :D Como não podemos, o cinema nos proporciona esses momentos.

Leatherface, Pinhead, Freddy Krueger, Jason... se tornaram ídolos por algum motivo.

Nem todo mundo assume prazeres tão terríveis, mas eles são humanos e estão por aí... em toda parte. :D

Maicon Antonio Paim disse...

Exatamente Marcel. O seu comentário inclusive me lembrou de um conto do Rubem Fonseca em que um cidadão de "bem" usa as noites para o seu maior prazer: atropelar pedestres. Enquanto a esposa enfrenta o tédio da vida urbana de classe média assistindo novelas, ele usa o carro para um tipo de "lazer" sádico.

Ainda bem que a grande maioria das pessoas prefere combater o tédio assistindo a filmes de horror do que agindo como um psicopata.

Giovani Andreoli disse...

: :

Penso que "Saw" ("Jogos Mortais" no Brasil) é apenas uma cópia mal-feita de "Seven" ("Os sete pecados capitais" no Brasil).

"Seven" é um filme sobre tortura, e sobre um pretenso "sentido" por trás das torturas, visto que o torturador acredita estar servindo a um propósito sagrado. Ótimo filme, é muito profundo, apresenta componentes humanos em uma dimensão relevante.

"Saw" simplesmente repetiu a fórmula do roteiro. A diferença é que jogou fora a profundidade, a dimensão realmente humana da narrativa, permanecendo superficial e pretensioso, composto de um sadismo "raso" e vazio de significado.

Em geral, funciona assim: alguém cria alguma boa idéia que faz sucesso, e logo há cinco ou mais "continuações", "refilmagens", "inspirações", "homenagens", etc.
_______

Marcel disse...

Eu acho que Saw e Seven são propostas completamente diferentes.

Saw eu poderia comparar com Hostel...

enquanto Seven, eu compararia com Silence of the Lambs.

Giovani Andreoli disse...

: :

Sim, concordo, são propostas diferentes. Mas o tema é o mesmo: sociopatia, tortura, etc.

O que disse é que não acho a proposta do "Saw" válida, enquanto a proposta do "Seven" é.

Pra mim, claro.
_______

Maicon Antonio Paim disse...

Mas em "Saw" o assassino também acredita estar servidno a um propósito; tanto que as vítimas são pessoas que ele julga necessitarem de uma mudança drástica em suas vidas, e os jogos são desafios para testar se as pessoas têm "estomâgo" para tomar um rumo radicalmente oposto. O serial killer vê a tortura física e psicológica como um instrumento de purificação espiritual.

Entretanto, o que torna Seven superior a Saw é que Seven tem um roteiro melhor, personagens mais bem desenvolvidos e é dirigido por David Fincher.

Maicon Antonio Paim disse...

Desculpem pelo "servidno" e pelo "estomâgo" (hahaha)

Marcel disse...

Sigo achando que vcs tão comparando coisas completamente diferentes... sem falar que quase 10 anos separam os dois filmes..

Seven é muito mais um thriller psicológico.. que se propõe à entrar na mente de um psicopata com um senso de moralidade desvirtuado... e é isso que é explorado no filme.

Enquanto Saw é um terror que trata muito mais o sadismo. Que joga na cara situações tenebrosas de forma bem mais explícita... a idéia dele é realmente te fazer pensar o que faria se estivesse naquelas condições.

vejo propostas completamente diferentes

Marcel disse...

aliás, Maicon... qual o nome do conto do Rubem Fonseca ? me interessei :D

Maicon Antonio Paim disse...

Passeio Noturno (Parte I e II)

Está na coletânea de Feliz Ano Novo