quarta-feira, 20 de abril de 2011

a dor do conhecimento




"Ágora era a praça principal na constituição da pólis, a cidade grega da Antiguidade clássica. Normalmente era um espaço livre de edificações, onde as pessoas costumavam ir configuradas pela presença de mercados e feiras livres em seus limites, assim como por edifícios de caráter público. Enquanto elemento de constituição do espaço urbano, a ágora manifesta-se como a expressão máxima da esfera pública na urbanística grega, sendo o espaço público por excelência. É nela que o cidadão grego convive com o outro para comprar coisas nas feiras, onde ocorrem as discussões políticas e os tribunais populares: é, portanto, o espaço da cidadania. Por este motivo, a ágora (assim como o pnyx, o espaço de realização das eclesias) era considerada um símbolo da democracia direta, e, em especial, da democracia ateniense, na qual todos os cidadãos tinham igual voz e direito a voto. A de Atenas, por este motivo, também é a mais conhecida de todas as ágoras nas póleis da antiguidade."


(pt.wikipedia.org/wiki/Ágora)


Ágora é o título de um filme de Alejandro Amenábar (Espanha, 2009) que narra o final da vida da filósofa, astrônoma, etc. Hipátia de Alexandria (interpretada pela ótima atriz Rachel Weisz), a qual nasceu aproximadamente entre 355 e 370 AD, e morreu em 415 AD (completou de quarenta e cinco a sessenta anos, portanto).





"Hipátia distinguiu-se na matemática, na astronomia, na física e foi ainda responsável pela escola de filosofia neoplatônica - uma extraordinária diversificação de atividades para qualquer pessoa daquela época. Nasceu em Alexandria em 370. Numa época em que as mulheres tinham poucas oportunidades e eram tratadas como objetos, Hipátia moveu-se livremente e sem problemas nos domínios que pertenciam tradicionalmente aos homens. Segundo todos os testemunhos, era de grande beleza. Tinha muitos pretendentes mas rejeitou todas as propostas de casamento. A Alexandria do tempo de Hipátia - então desde há muito sob o domínio romano - era uma cidade onde se vivia sob grande pressão. A escravidão tinha retirado à civilização clássica a sua vitalidade, a Igreja Cristã consolidava-se e tentava dominar a influência e a cultura pagãs." (Carl Sagan, em Cosmos)


Trata-se de um período pouco retratado da História, nos primeiros anos do cristianismo disseminando-se pelo império, no qual podemos ver que os cristãos deixaram de ser "pobres vítimas indefesas" já muito cedo, passando de perseguidos para o mesmo patamar de algozes desaumanos o qual combatiam. Por outro lado, o fim da escravidão formalizada consistiu no final de um sistema social em crise, o tipo de ruptura que invariavelmente resulta em ondas de violência endêmica extrema.


Ah, sim: os eventos se passam ao redor da "mítica" biblioteca de Alexandria que, na Antiguidade, foi um dos mais fabulosos resultados da expansão promovida por Alexadre, o Grande (mas isto é outra história... e outro filme também). Podemos assistir aos acontecimentos hipotéticos que levaram à tétrica destruição da biblioteca, bem como de toda escola ali desenvolvida.


E isto é interessante para as gerações atuais: dar-se conta de que hoje, a informatização tornou a perda de dados algo virtualmente impossível, porém nem sempre foi (ou ainda é) assim. O  conhecimento é acumulado dentro de certas condições econômicas, políticas, culturais... através de substratos de registro específico (na época, principalmente papiros). E assim como o pensamento crítico sempre representa uma resistência à brutalidade dos sistemas totalitários, a informação e a sabedoria sempre podem ser destroçadas pela fúria da barbárie... brutalidade e fúria ques ainda são realidades miseravelmente humanas.





Mesmo dentro deste contexto de enorme violência, o filme sofre daquele problema costumeiro da "abordagem macia" dos fatos, não revelando um quinto do tipo de crueldade que se tinha por hábito naquele período histórico, presenteando-nos com um desfecho muito mais generoso do que o que provavelmente, de fato, aconteceu.


De outro ângulo, somos presenteados com as habilidosas imagens do planeta Terra visto de fora, do espaço, o que pode ser visto como uma imagem de totalidade, demonstrando a noção de como nossos dramas fúteis são insignificantes diante da grandiosidade do cosmos -- grandiosidade acessível para uma consciência esclarecida, o que a protagonista persegue até suas últimas forças, dentro de um torvelinho de paixões e conflitos humanos.


Hipátia nos é apresentada como uma personagem feminina forte e coerente, definida por suas convicções e escolhas, não por um romance ou por não ser um homem. E isso, espantosamente, mesmo que o roteiro retrate os seus  sentimentos e relações muito próximas com alguns dos homens de Alexandria, e também a consciência dela sobre o desvalor das mulheres na época, tidas como "seres biológicamente inferiores," portanto incapazes e se destacar por meios naturais (no seu caso, em assuntos intelectuais).


A personagem tem sua profundidade acrescida de mais um degrau no momento em que, desesperada pelo absurdo da situação, ela recorre ao hábito de sua condição sócio-econômica de agredir um escravo (no caso, apenas verbalmente). Não, Hipátia não era uma santa, e seu trabalho inestimável só progrediu porque tinha escravos a seu dispor. Mas, e se pensarmos hoje, quantos de nós não dependem de pessoas em funções de "escravos" (assalariados ou quase) para manter funcionando as suas atividades mundanas?


Por fim, trocando a escravidão formal por um sistema patriarcal ainda mais rígido em muitas concepções de cidadania e humanidade, o rumo da civilização que produziu a nossa passou por perdas inestimáveis, amenizadas talvez apenas pela beleza e valor dedicados à memória daquilo que foi perdido.


O nome do filme poderia ser "Hipátia", porém creio que a feliz escolha tenha sido para enfatizar a importância do espaço público de convivência, de manifestações sobre crenças e normas, e que não está isento de ser palco de agressões, ignorância e injustiças. Podemos ver isso no nosso próprio senado hoje, por exemplo. "A voz do povo é a voz de deus" pode ser um ditado de conseqüências perniciosas...


Por sua fotografia belíssima, atores competentes e temática muito relevante -- a dor inerente a quem quer saber além daqueles que os que o cercam -- , Ágora vale muito a pena assistir.





3 comentários:

Maicon Antonio Paim disse...

Pois é; o destino daqueles que escolhem pelo mundo das ideias e do conhecimento é um caminho solitário diante daqueles que se contentam com as banalidades do cotidiano.

Maicon Antonio Paim disse...

Gosto muito de outros dois filmes do Amenábar: "Abre los ojos" e "Os Outros"

Giovani Andreoli disse...

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Sim, também gostei destes.

Aqui, outro artigo sobre o filme e a personagem histórica:

http://ipsilon.publico.pt/livros/entrevista.aspx?id=248062
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